sábado, 27 de dezembro de 2008

a casa que perdia cor


a casa que perdia cor
(conto pós-Natal)


Era uma vez, que não eram duas nem três,
uma casinha de cor
vivia lá no alto da serra, tendo por companhia quatro montanhas irmãs
um lago meio deslavado
um caminho um pouco sozinho
um gato matreiro, mas que já não tinha cheiro
e uma chaminé que ficava mesmo, mesmo ali ao pé.

Era uma casa de pedra toda airosa
das de outrora
quando o vagar encontrava espaço para as construir

Se o Sol lhe acariciava de Norte até fazia inveja aos castelos e palácios.

Alguns musgos espreitavam aqui e ali
mas esse era dos poucos sinais que dava conta do tempo brincar consigo
porque de outra forma ninguém saberia dizer a sua idade
tão antiga, diziam, que sempre estivera ali

[pormenor importante]
Era uma casa de pedra sim, mas não uma casa qualquer
cada pedra sua trazia consigo a singularidade de uma cor
E era impossível encontrar duas com cores iguais

Tinham vindo pessoas de todo o mundo admirá-la, e até estudá-la
Interrogavam-se como, sem ninguém morar nestas bandas, sem ninguém cuidar dela, ano após ano, conservava uma cor, uma não, centenas, milhares, quatrimizilhões de infinito (e o meu pai é bombeiro e o teu não, e o meu tio é polícia e prende o teu...) de pigmentos diferentes que tornavam aquele alto não geodésico local de peregrinação de pintores, cientistas, engenheiros civis, romeiros, fotógrafos, robialacos e dirupos, casais de namorados ao Sábado à noite, famílias aos Domingos de manhã e simples curiosos. Trapaceiros também os havia, vendiam “as autênticas pedras da casa de cor”, mas eram simplesmente umas imitações baratas.

Com o passar das novas o local foi sendo cada vez mais conhecido
Com o passar das crescentes as quatro irmãs foram esventradas pelos mineiros
Com o passar das cheias o lago foi usado para descargas e lavagens do minério
Com o passar das minguantes o forno comunitário, onde baloiçava a chaminé, deixou de ser usado.
e com o tempo o gato repousou de vez, de desgosto.
O único que inicialmente ficou contente foi o caminho mas logo sufocou com o alcatrão, para que mais, e mais, muitos mais, camiões uivassem.

[E então aconteceu]

Aconteceu que a casa de cor começou a desbotar chorando de tristeza, formando uma salganhada de cores inimaginável. Era tortuoso de se ver. E assim, as cores desmaiaram, empalideceram e, sem apelo nem agravo, a casa perdeu cor.

Logo a chuva se encarregou de lavar aquela desordem do chão, mas à medida que a ribeira transportava toda a amálgama de cores serra abaixo, também o verde dos campos de pastagem, o castanho das terras fabricadas, o amarelo da carqueja, o magenta da urze, o azul mentiroso do lago, o branco dos narcisos, o negro das torgas queimadas... enfim, todas as cores se juntavam àquele cortejo fúnebre e a serra foi adormecendo cinzenta. A cor dera lugar ao cinzento do mundo presente.

Os cientistas apressaram-se a balbuciar o sucedido
Os políticos apressaram-se a camuflar o sucedido
Os intelectuais apressaram-se a discorrer sobre o sucedido
Os militares apressaram-se a isolar o sucedido
Os jornalistas apressaram-se a esquecer o sucedido
e os robialacos e dirupos simplesmente perderam o emprego

Na escola passaram-se a fazer somente desenhos a carvão e as correcções eram uma confusão
No trânsito, os acidentes eram recorrentes, pois a escala de cinzentos não permitia diferenciar devidamente o parar do andar
O mar tornou-se morto
Os pintores endoideceram mais cedo
Os poetas perderam inspiração
As borboletas definharam
Os amantes deixaram de poder corar
As refeições eram agora um penoso exercício medicamentoso

[E então desaconteceu]

Francisco era um rapaz que sempre fora a alegria da rua
com uma energia contagiante e um sorriso no semblante
não havia brincadeira que lhe chegasse
Mas quando o exílio da cor o atingiu
com ele o silêncio se instalou
Não mais se interessou por nada
Nada, não é bem assim, dentro dele histórias mirabolantes com voadores elefantes e peripécias de muitas cores continuavam a viver.

Um dia quebrou o silêncio e partilhou com o seu amigo Barnabé
as façanhas que iam ocorrendo lá onde a cor ainda coreava.
Barnabé não conseguiu impedir que duas lágrimas lhe rolassem pela face esbranquiçada
e nisto o Sol ao atravessar as ditas prismou de novo a cor. Foi lindo.
A luz a rasgar o cinzentismo do mundo e a inscrever nos velhos móveis da cozinha o castanho do castanheiro pois claro, e logo depois o grená do sofá e o verde alface do avental da mãe, o amarelo do canário e o salmão da carpete e... e... e...

Barnabé para um lado, Francisco para outro.
Desataram ambos a contar estórias do mundo de antigamente, antes de ser assim sem cor, e ela aos poucochinhos, foi ganhando coragem e voltou, voltou ainda mais brilhante, e à medida que mais e mais e mais cores invadiam os campos, as cidades, as fábricas, as estações de comboio e lojas de guloseimas, mais sorrisos despontavam nas pessoas.

As estórias nunca mais pararam e a casinha no alto da serra, dizem, voltou a ganhar o seu restaurado mosaico de cores. E ainda hoje lá está. Dizem também que enquanto no mundo continuarmos a povoar o nosso imaginário de estórias sempre haverá vida e cor.

Cor de alecrim, esta estória chegou ao fim.
Azul e encarnado, este conto está acabado.

às gentes do Maciço da Gralheira

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

história metade



O meu nome é António
O meu nome é António e sinto ao teu lado
Sinto ao teu lado que não estás ali
Não estás ali para me sentires como eu te sinto
E assim sentimos que tudo ganha uma maré sem volta
E não precisava ser assim
Não.

***

O meu nome é Beatriz
O meu nome é Beatriz e choro ao teu lado
Choro ao teu lado que não ouves ali
Não estás ali para me ouvires como eu te choro
E assim ouvimos que tudo ganha um silêncio sem volta
E precisava ser assim
Sim.

domingo, 30 de novembro de 2008

Pixel por Pixel











Pixel por Pixel

(ensaio desinformático)


O download do último anti-vírus voltou a dar problemas. Mas desta vez era mais grave. Azureus estava debilitado e nada o protegia da estirpe N56-Beta04 que lá fora, em ambiente hostil, dizimava ricos e pobres, brancos, pretos, rosa, placas gráficas e de silício, intelectuais de Feng Street e até, ouvira-se, elementos da Backbone. Os velhinhos Linux Pro foram os primeiros a sucumbir.


jus vitae et necis


Metrobit, Ano 2039.

UPS!!! fora descoberto, a UUencode corria agora no seu encalço. A pena por fazer qualquer download ilegal no submundo de Gateway era tão somente o apagamento por completo de todo o sistema. Não mais viagens virtuais, sexo on-demand, chats neurais, chips sem açúcar ou mesmo direito a reparações na hora. Era simplesmente banido de todo o DNS.

Mas nem sempre as comunicações foram assim. Em tempos tinha sido um programa bem comportado, jovem influente e promissor, brilhante aluno na Router School, 2º classificado no concurso de velocidade do processador e 4º nos jogos de memória por equipas, para além do honroso 1º lugar ex-aequo nos GIF awards... nada fizera prever este desfecho. E agora ali estava, correndo velozmente pelo ciberespaço, desviando-se por um lado de hackers que assomavam a cada esquina naquela web mal frequentada, e por outro, da UUencode cega por mostrar trabalho ao Grande Servidor.

Archie era o único amigo que o poderia ajudar.
Lançou o mirror em que tinha trabalhado afincadamente nos últimos meses para despistá-los e desatou, insistentemente, a inscrever a sua password no TCP/IP de Archie. Assim que o moderador lhe deu acesso, entrou com toda a largura de banda possível e esperou. Passado o tempo necessário a estas coisas, devido a um protocolo de segurança rígido e apertado, Archie utilizou o dial up fugindo assim ao controlo da UUencode que deixara de usar tão arcaico sistema.

Pertenciam ambos à Unix e eram os últimos representantes dos tempos gloriosos da Firewall. Não havia ano em que não se reunissem para falar, pela enésima vez, das façanhas que realizaram com toda a destreza e valentia na sua missão na internet. Naquele tempo sim, isso é que era, havia uma netiquette entre softwares, não era como agora em que qualquer pirralho mal programado já vinha revestido com fibra óptica à nascença, no mínimo. Mas os bps mudaram e com o passar das actualizações os utilizadores esqueceram-se deles e agora eram obrigados a viver em caches aqui e ali, vergonhosamente.

Trocaram ping’s entre si e fizeram log in. Sem delongas, as FAQ surgiram por si e não foi preciso esperar muito tempo para perceber que era chegado o momento.


ecce homo


À primeira vista JPEG não parecia simplesmente ter uma imagem à altura do intento, mas desenganem-se aqueles que acham que cresceu passando a vida em videojogos ou a enviar smileys por SMS à custa de promoções de Natal. Não, a vida tinha-lhe sido difícil e por vezes chegou mesmo a ter sérios problemas de resolução. Ultrapassou essa fase mas sempre ficou um pouco comprimido com a experiência traumatizante de ver imagens zipadas à sua frente. Pequeno mas versátil já dizia a mãe. Em offline dizia-se até que não fora o episódio, mais por curiosidade do que por vício, de ter sido apanhado, em horário de formação do Magalhães, a espreitar pelo IRC das raparigas com um domínio falso, e o seu upload poderia ter sido outro. Ficou a saber-se mais tarde que tudo partiu de uma denúncia com aviso de recepção da newsgroup da sala 3, invejosa por ter sido dotada de um modem mais lento.

Mas tudo isto eram agora gigas passadas e o presente é que interessava e JPEG era para todos os efeitos o escolhido. Este passado em tudo semelhante fez de Azureus e JPEG dois programas compatíveis, aos quais Archie acolhera e para quem tivera sempre um binário amigo. Ele era dos poucos que ainda se lembrava da importância destes na história de Metrobit.


in posterium


Apanharam várias auto-estradas da informação até chegar ao seu destino. Alojados num cibercafé, apressaram-se a colocar o primeiro disco rígido que encontraram como slave e explicaram-lhe o plano. Era arriscado, mas se conseguissem ludibriar o pérfido HTML o tempo suficiente para introduzir na forma de ficheiro oculto um blogue auto-destruidor inventado por JPEG, a batalha estaria ganha. Contavam para isso com a preciosa ajuda do cabo Firewire como agente infiltrado. Primeiro a RDIS, depois a ADSL, ambas passaram pela linha e não se aperceberam de nada e de repente 5, 4, 3, 2, 1... ERRO DE TRANSMISSÃO!!!! nada voltaria a ser como dantes e o software era livre, software livre!!! se os nossos avós estivessem aqui para festejar esta vitória da programação...

“No mundo, não mudam as ideologias, mudam as tecnologias”
Aldous Huxley

domingo, 23 de novembro de 2008


vagueio | passeio

(imagens urbanas .: 1)




22 para 23 . novembro. 08

Folhas secas no chão que me amparam a queda dos passos
Estação vazia de um comboio que já não passa

Calçada calafetada a beatas de outrora

Néons furiosos, sempre furiosos, em fúria



***

As veias, as artérias estão desertas
Consigo até ouvir o silêncio, chego até a ouvir o tambor

Talvez seja da noite, desta noite...


As caixas estão quase todas já fechadas
mas nalgumas o fósforo ainda arde

Alguns dos ramos mais altos das árvores dizem-me olá
Ando, ando, ando. Como se o cansaço pudesse aniquilar o pensar
No templo, as compras não param, para receber o menino que já não se vê há muitos anos
Oiço o sino baço ao longe, e a cadência abranda, abranda, abranda.
Encontro a sra. da abóbora de regresso a casa, pontual como sempre.

(A realidade está a tornar-se tão aborrecida e medonha)

A realidade está a tornar-se tão real, que realmente parece já não haver nada de interessante para realizar aqui


Há ronronares nocturnos de ansiedade lasciva que passam por mim
Coreografia quase marcada, lanço letras aos candeeiros e espero que no final possam fazer sentido, não que o procure
A escola parece-me um tarrafal, mas os guardas de moloch não estão aqui, só dão ordens
Está livre diz o Parque, está livre.
Na mensagem que interiormente já fora, expulso os ses e os mas, é a verdade que respira
Há estrelas a mais para mim na rua, o momento não é para isso
Há vapores ébrios e adolescentes no ar, sinto-me delator
Há um prenúncio de morte, anunciada, até Fevereiro, dizem-me
Cheira a enxofre mas os pés movediçam-se em petróleo


Volto a casa para buscar o cachecol. Saio com a caneta nova que agora já escreve.

Há qualquer coisa de relva nas nossas vidas, verde, confortável, extensa, fresca... mas fora dos ritmos

Sou um fiscal da noite e vagueio sem destino

Vou baptizando, lentamente a humidade o momento, o momento.


tALVEZ já não pertença aqui
tALVEZ ainda não tenha chegado

tALVEZ já não exista

tALVEZ tudo seja cíclico

tALVEZ já não haja novidade

tALVEZ qualquer coisa


Há falta de vida e de futuro nas conversas dispersas nas esquinas
Acuso o cansaço e o jardim acolhe-me por breves arfares
O castelo vigia-me, atento, atento.

Os latidos perseguem-me embora não sendo os mesmos. Muitos cães passeiam os seus donos, rédea curta

Sou atropelado imaginariamente mas, já passou... atingiu apenas a outra parte do tracejado

Há contradições latentes, pungentes, prestes a implodir-explodir, implodir-explodir
Há acasos, mas já não os chamo assim
Há qualquer coisa em mim que deseja partir a montra, sigo em frente, no caminho

Há qualquer coisa em mim em tudo isto, mas prefiro não pensar nisso, vou dormir

O segundo dia chegou a casa.

(a S. o meu par na dança desta noite)

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O Primeiro Dia


A principio é simples, anda-se sózinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Letra: Sérgio Godinho

O Mercador de Coisa Nenhuma


Era uma vez há muito tempo num pais exótico e longínquo um homem de nome Abdul-ben-Fari, que era comerciante de tapetes na cidade de Abjul.

Vivia tranquilamente dos seus negócios, que lhe enchiam cada vez mais o cofre e lhe alegravam o coração. Era respeitado como um dos homens mais ricos da cidade e também, um dos mais felizes. Mas, num dos recantos do seu coração alegre (e não do seu cofre repleto), instalara-se um espinho de tristeza, que crescia e doía, às vezes.

Abdul-ben-Fari tinha um filho, Racib, quase um homem feito. Muito o preocupava Racib. Preocupava-o e afligia-o.

Que tristeza para Abdul-ben-Fari, quando espreitava o filho no armazém e o surpreendia a bocejar, sempre a contas com os infindáveis tapetes que era preciso desdobrar, escovar, limpar e voltar a dobrar, até que aparecesse um comprador que os levasse por mais do que eles valiam! Com que desgosto o pai de Racib via o seu único filho correr, mal fechava a loja, até à sombra de um jardim, para, de ouvido no chão, escutar o lento, progredir das raízes através da terra ou o erguer paciente dos caules em direcção à luz! E que estranha mania essa de contar as formigas de um carreiro, não sucedesse ter-se perdido alguma, desde a última vez que por lá passara ! E quem viu doidice igual à de se debruçar para dentro de um poço e pronunciar palavras sem fim, que o poço alongava, como uma boca cheia de ecos?

-Alá quis que eu tivesse um filho de cabeça ao vento - lamentava-se Abdul-ben-Fari. - Que hei-de eu fazer?

Mas os mestres de Racib tinham-lhe apreciado a inteligência, os vizinhos diziam-no bondoso e os clientes achavam-no amável.

- Talvez não tenha grande jeito para o negócio de tapetes - observavam alguns. – Mas isso que importância tem???

Tinha muita importância, imensa importância na conta de Abdul-ben-Fari. Se ele não estivesse sempre atento, o filho era capaz de vender um belo tapete de Cari-a-Chab como se fosse um trapo de esfregar candeias.

Ora isso tinha muita importância, pois então!

Um dia, depois de muito matutar, Abdul-ben-Fari chamou Racib, deu-lhe uma bolsa de dinheiro para as mãos e disse-lhe:

- Como me parece que não gostas deste negócio de tapetes, nem eu quero a minha ruína, toma este dinheiro para aplicares no negócio que preferires. Vai para outra cidade, faz o que achares conveniente. E daqui a um ano quero-te de volta com uma fortuna ganha por ti.

Lá foi Racib para outra cidade, de outra terra. Como é que iria arranjar-se? Que fazer com aquela pequena fortuna? A bolsa com o dinheiro do pai pesava-lhe muito , mas ele não se decidia.

- Talvez se eu vender água seja um bom negócio...

No dia seguinte, encheu dois depósitos de água pura, transportou-os para uma das ruas mais movimentadas da cidade e começou a apregoar:

- Quem quer gotas de água? Quem quer?

A sua voz cristalina soava alegremente, no meio dos pregões gritados pelos outros vendedores, mas ninguém queria gotas de água. Quando se aproximavam possíveis fregueses para encherem uma bilha, um barril ou um balde, Racib avisava-os:

- Quero que vejam a água a cair, gota a gota. Reparem como brilha ao sol uma única gota, vejam como se arredonda e se alonga até se desprender, deixando outra à espreita no seu rasto. E os círculos que abre ao cair...

Os clientes que viviam todos muito apressados e só tinham ideias de dinheiro e ganância na cabeça queriam lá saber destes pormenores. E iam-se embora, resmungando:- Este rapaz não tem a cabeça no seu lugar!

Nesse dia, Racib não fez negócio, nem no dia seguinte, nem nos outros dias. Talvez fosse mais feliz noutra cidade. E Racib correu muitas terras, tentando vender as gotas de água que ninguém queria comprar.- Vou mudar de negócio- decidiu , um dia.

Carregou duas grandes caixas de areia fina para as portas de uma cidade e começou a apregoar:- Quem quer grãos de areia? Quem Quer?

- Quanto pedes pelas duas caixas? – perguntou um homem que passava.- Só vendo um grão de cada vez, senhor. Repare que a areia, ao longe, parece cinzenta. Mas cada mão cheia contém um milhão de grãos todos diferentes, Eu tenho nestas caixas grãos azuis, pretos, amarelos, brancos e transparentes. Tenho grãos azulados, rosados alaranjados... de que cor quer?

Mas o homem já se tinha ido embora, enfadado com aquele mercador de coisa nenhuma. Sim, era esse o nome que lhe davam nas cidades por onde passara:- Racib, «O Mercador de coisa nenhuma». Que valor tinham gotas de água e grãos de areia? Para que serviam?

Ninguém gastava o seu rico tempo e o seu rico dinheiro a comprar artigos tão insignificantes. E a voz de Racib perdia-se como gota de água no meio do mar ou grão de areia no deserto.- Vou mudar mais uma vez de mercadoria.

Instalou-se numa cidade, onde não era conhecido, e passou a vender sonhos.- Como fazes para ter sonhos à venda? – perguntou-lhe um grande senhor, que o ouvira apregoar.

- Durmo , senhor – respondeu Racib.

- Quem me dera conseguir dormir... – respondeu o senhor. – Há tanto tempo que não consigo dormir e tanta falta me fazem os sonhos! Conta-me um dos melhores sonhos que sonhaste – pediu o senhor.

Racib contou um lindo sonho, uma longa história que começava no meio, voltava ao princípio e não tinha fim.

- Conta-me outro- pediu o senhor, deliciado.

Mais pessoas se tinham juntado à volta. Também elas queriam possuir um sonho só para elas, um belo sonho contado por Racib.

Teve sempre a casa cheia durante muitos meses tendo por isso ficado muito rico. E quando estava a expirar o prazo de um ano, que o pai lhe tinha dado, montou o seu camelo e, segurando firmemente uma pesada bolsa cheia de dinheiro, tomou o caminho de casa. Só não chegou a casa do pai, rico como o mais rico dos mercadores da Arábia, da Pérsia e da Turquia, porque no caminho, embalado pelo andar pausado do camelo, adormecera, sonhara e, durante o sonho, abrindo as mãos, deixara escorregar a bolsa com o dinheiro, que se perdeu no deserto. Mas vós, que lestes esta história sabeis que ele conseguiu porque também sonhastes.


“O mercador de coisa nenhuma” de António Torrado