segunda-feira, 25 de maio de 2009

exercício da gota d’água











Era uma vez uma gota de água que ao distrair-se durante o período das monções foi parar a um lugar onde não chovia fazia tempo.

Por não estar acostumada a chover sozinha logo lhe assolou à cabeça uma pergunta:

- O que faço aqui?

Andou um pouco e perguntou à planta?

- O que faço aqui?

A planta respondeu-lhe:

- Não sei, mas podias escorregar nas minhas folhas e aliviar-me a secura.

- Não, eu sozinha seria incapaz de o fazer.

Encontrou depois um cavalo:

- Podias saltar para o meu dorso e lavar-me.

- Não, eu sozinha seria incapaz de o fazer.

Mais tarde uma nuvem:

- Podias fazer muita força e talvez conseguíssemos pelo menos humidade.

- Não, eu sozinha seria incapaz de o fazer.

Por fim encontrou Gil, o rapaz do peão, que tinha acabado de cair:

- Eu sei o que tu podias fazer; podes fazer-me companhia enquanto a dor não passa.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

o despertar dos caracteres











O Despertar dos Caracteres Invisíveis

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O Despertar dos Caracteres Visíveis

Das estrelas caiu uma chuva de sonhos sobre as nuvens, a terra, o mar, dois caminhantes, três pessoas que pensam ao contrário, um equilibrista, três gaivotas para a direita e duas para a esquerda, quatro pinguins em marcha, um ouriço isolado, duas fisgas celestiais em confronto com uma Amazona grávida que disparava o seu arco de duas flechas, o cruzamento de comboios, o labirinto, dois chineses, um cristão e tudo isto à hora paralela do relógio de sol do sonho encantado.

sábado, 4 de abril de 2009

passeio| vagueio






passeio| vagueio

(imagens urbanas .: 2)



Foi uma vez
há muito tempo
Mas acredito que isso é apenas um pormenor
Na realidade o verbo mais apropriado
teria sido o gerúndio

Mas foi de facto uma vez que reparei
Com olhos que ainda não haviam sido
Que durante as minhas viagens de fim de dia à grande cidade
A mesma estava morta, ou pelo menos em decomposição

Os corpos arrastavam-se nas escadas da vontade própria
Os rostos não estavam ali
O cansaço era todo ele presente
E o brilho no olhar já tinha saído faz tempo, o próprio olhar também

É triste e eu triste fiquei.

Tive necessidade de me sentar no colo de uma árvore
a cheirar a erva e beijar o sol
Mas sei que nem todos podem fazê-lo

É o frenesim, é a vida.

E esta é uma história sem fim
Feita do dia após dia
Do trabalho e das diferenças
Onde o final, acredito, ainda não está escrito

E é nos pequenos gestos
E nos pequenos grandes sorrisos
Que ainda sementeia a esperança exilada
Até que os dias e as noites a façam voltar

Espero ainda estar por aqui.

Espero que a grande cidade seja só um nome

Espero.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sonhos de Foguetão











Não era possível.


Não era possível que tantas estrelas estivessem ali, ali lá longe. E outras já não estavam, só a sua luz vagueava ainda pela imagem do que foram.

Como as queria conhecer! Conhecer-lhes a verdadeira cor, luz e forma.


Mas agora era impossível, já não era capaz de voar, de se lançar no espaço e conhecer os mundos que os seus parafusos e arrebites tinham sonhado um dia.

A sua propulsão a palavras não lhe permitia agora viajar mais do que a órbita terrestre, com tantos diminutivos, abreviaturas e sms que por aí circulavam. Simplesmente não era possível. O tempo das palavras grandes e com tempo tinha acabado.


Mas ele não desanimava, foguetava de terra em terra à procura do melhor contador de estórias. Se os dois pudessem fazer juntos a viagem ao mundo das estrelas, a sua viagem não teria fim. Sim, era possível. Um bom contador sabe o sabor das palavras e viaja nelas até que as mesmas encarreirem umas nas outras, atrelando umas estórias às outras num carrossel infindável pela vida do passado que há-de vir. Nas estórias que pedem para ser contadas sempre há uma mais afoita que se chega à frente, assim se respeitem os silêncios do sentir, pensava para consigo.


“João sem medo dos s’s” era um homem de meia idade, cabelo trilhado pelo vento e com brancos tímidos a despontar aqui e acolá. Na lábia que a vida lhe tinha obrigado a desfilar, lá encontrara forma de ganha-pão que não era de todo comum. Era contador de estórias. Trazia consigo o encanto do escutar. “Sim, saber contar é sobretudo saber escutar”, assim lhe ensinara seu tio Arnaldo. João ganhara o título de “João sem medo dos s’s” pois tinha esta estranha mania de só contar estórias que começassem pela letra S. Às vezes fazia batota é certo, mas na maioria das vezes era simplesmente como o digo e escrevo agora.


Celeiro da extinta cooperativa dos cereais. Três da tarde. O descanso ainda reina e o calor abrasa. João entra na vagareza que o corpo lhe impõe e a plateia já o espera impacientemente.


- João conta aquela do “Sapato mal furado pelo tempo”

- Não, a do “Sico, sico sarapico, salvador já nasceu rico”

- Não ligues a eles, conta antes a outra do “Sonhos de Foquetão”


E João decidiu mesmo contar essa.

E começava assim:


- Era uma vez um foguetão que desejava conhecer o universo das estrelas. Como as queria conhecer! Conhecer-lhes a verdadeira cor, luz e forma.


Mas agora era impossível, já não era capaz de voar, de se lançar no espaço e conhecer os mundos que os seus parafusos e arrebites tinham sonhado um dia.

A sua propulsão a palavras não lhe permitia agora viajar mais do que a órbita terrestre, com tantos diminutivos, abreviaturas e sms que por aí circulavam. Simplesmente não era possível. O tempo das palavras grandes e com tempo tinha acabado.


Mas ele não desanimava, foguetava de terra em terra à procura do melhor contador de estórias...


Houve um estrondo, depois uma pausa. Palha e poeira dançaram pelo ar não deixando ver absolutamente nada. Quando assentou, nem agulha nem João. Naquele celeiro não mais o João foi visto, nem ali nem em mais nenhum lugar. Dizem que o foguetão o veio buscar. As más línguas não acreditam, falam em tornado fora da estação, mas isso é só para abreviar a conversa, porque no fundo sabem que quando no céu imenso uma estrela viaja de um lado para o outro, são os sonhos do foguetão a ganhar lugar.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009









o baloiço da árvore perfeita


um dia assim
[nem mais nem menos]
perdido nos pés do pensamento
deixei-me cair no campo vazio e aconchegado de silêncio
e fiquei a encontrar-me nas nuvens

dei por mim a pensar qual seria a árvore perfeita para o meu baloiço
a dos sábios para que me balançasse no conhecimento?
ou a das frutas encantadas, para que em cada uma, descobrisse o sonho?
talvez a do círculo sagrado, ou a agarra-céus, a espalha-sombras, a acolhe-sol ou uma beija-árvore? ou uma daquelas de folhas que adivinham a sombra?
uma árvore matriarca ou patriarca?
ou talvez uma que captasse as ondas de rádio do mais ínfimo segredo?
uma que nunca desse para alcançar com as mãos?
uma que fossem muitas?
uma árvore-poeta? uma que dançasse com o rio?
uma que morasse na floresta mágica ou que fosse comilona de ruídos?
uma que fosse habitada de estranhos seres?
uma oca e tenebrosa de sentido?
uma contorcionista? uma tímida?
uma maior que a vista do horizonte?
uma árvore-das-relações-humanas?
uma das mil-cores?

[...]

e foi então que do céu caiu uma folha bailando com o destino vindo ronronar no meu peito qual papagaio de papel
poisei-a na erva, vi-lhe o mundo e soube imediatamente a resposta
a árvore perfeita para o meu baloiço
é aquela que tem ao lado o meu amigo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


o baile da pedra
conto bailado . baile contado


Era uma vez um músico que chegou a uma aldeia que era muito triste.

Aproximou-se de uma casa a assobiar, bateu à porta, e logo disse:


- Bom-dia bom homem! Por acaso não haverá por aqui quem estivesse interessado em ajudar-me a fazer um baile? Sou músico mas infelizmente faz tempo que já não toco nenhum instrumento e já não aguento mais.

- Um baile, que baile? Faz anos que já ninguém ouve música aqui. Vá-se embora, vá-se embora. Aqui ninguém toca música.


Então, o músico apanhou uma pedra que encontrou ali pelo chão, limpou-lhe a terra e começou a bater com ela em vários sítios, a encostá-la ao ouvido, a escavar o seu interior...


- Bem nesse caso vou ter de fazer um baile da pedra.

- Um baile da pedra?


A gente daquela casa e outras pessoas que por ali passavam e que entretanto se tinham juntado à conversa começaram a rir do músico.


- Sim, um baile da pedra, não me digam que nunca fizeram um baile da pedra? Só lhes digo que é uma música muito boa, é impossível não dançar.


Responderam-lhe:

- Sempre queremos ver isso.


Foi o que o músico quis ouvir.
Depois de ter polido a pedra, pediu:

- Se me pudessem emprestar aí um sítio onde pudesse tocar e dançar?


E as pessoas da aldeia levaram-no até ao salão da colectividade.

O músico aí continuou a polir a pedra e a fazer-lhe uns orifícios.

Assim que a pedra começou a produzir os primeiros sons, disse ele:


- Já tem uma boa melodia, mas com o acompanhamento de uma concertina isso é que o baile ficava um primor!


Foram-lhe buscar uma concertina que tinha sido guardada em segredo. Tocou, tocou e a gente pasmada com o que via.


O músico ouvindo os sons da concertina:

- Está um nadinha desamparada. O que aqui precisava era de uma viola ou um cavaquinho para acompanhar.


Também lhe deram o cavaquinho. Outra vez tocou, tocou, experimentou novos acordes e arranjos e disse:


- Agora é que, com uma flauta, ficava que até os anjos se deliciariam com a música.


O dono da mercearia foi à arrecadação e trouxe-lhe uma flauta que tinha por lá guardada. O músico limpou-lhe o pó, soprou a sujidade do interior e tocou. Quando os ouvidos de todos já estavam extasiados, arriscou:


- Ai! um ritmo de um tambor é que lhe dava uma graça!


Trouxeram-lhe um tambor que estava pendurado no museu. Ele pôs-se a tocá-lo, a pular e a dançar com vigor e entusiasmo. A música soava que nem um regalo. Dançou até não poder mais.
Depois de descansar um pouco, ficaram os instrumentos todos ali no chão e a pedra meio perdida no meio deles. As pessoas da aldeia que estavam com os olhos e os ouvidos nele, perguntaram-lhe:

- Ò senhor músico, então e a pedra?


- A pedra... lavo-a e levo-a comigo para outra vez.

texto adaptado para conto bailado . baile contado por Gonçalo Oliveira e Marco Luna a partir de conto tradicional português recolhido por Teófilo Braga